quarta-feira, 23 de junho de 2010

Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer



Aos artistas de verdade da Cia. São Jorge


A questão do tempo! Fui assistir à peça da Cia. São Jorge de Variedades "Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está, precisa se mexer". Estou com ela deliciosamente entalada em minha goela até agora. Participei como espectador do nascimento da Cia e me considero uma espécie de membro afetivo dela. Nossas histórias, ora paralelas, ora convergentes, que nunca se distanciaram, hoje são ainda mais próximas !
O Texto é baseado em Heiner Muller, autor que nunca me despertou maiores empolgações.
A peça começou ao meio dia. De um lado da plateia estava Amir Haddad, do outro, um belo menino de 18 anos, jovem intelectual de olhos verdes. Um foi forjado e ajudou a forjar as entranhas dos anos 60, criou seu "Tá na Rua", louco, anárquico e revolucionário.O garoto nasceu na década de 90 e podia ser meu filho, mas é só meu aluno. Entre eles estávamos eu na platéia, e meus companheiros atores, Pat, Rogério, Marcello, Georgette, Paula, Mariana , no meio do tempo!

Assisti ao espetáculo com olhos tríplices. Assisti pelos belos olhos verdes do menino, pelos olhos de mil anos de história de Amir, mas meus olhos, meu corpo e minha voz eram principalmente os de Patrícia Guifford, grande atriz, amiga e irmã que, em determinado momento da peça, faz um discurso violento, vestida de Rosa Luxemburgo, gritando palavras de ordem, chamando-nos para a ação. Subiu na mesa, defendeu seu texto que pairava num limbo onde dançavam entre si ironia, romantismo desbragado, uma ponta de tristesa , desespero, incerteza, credulidade e incredulidade e tantas outras coisas.
Nos olhos do menino de olhos verdes havia deslumbramento, nos de Amir Haddad eu não sei. Nos meus, uma sensação angustiante do tempo que passa. Eu era o meio entre o futuro e a história.
Em um determinado momento o Cello grita, parafraseando o Bandido da Luz Vermelha: "a periferia vai explodir! Quem tiver de sapatos não sobra! " Olhei meus sapatos tão bonitinhos e pensei: o que eu faria , meu Deus, se tivesse que gritar tudo isso olhando olhos nos olhos do Amir? Os olhos verdes de 18 anos nos apontam para a força do desejo renovado, para o desejo fácil da sedução,mas e os olhos que fizeram e percorreram anos de história?Como encara- los de frente e clamar por revolução, seja com inocência sagrada, de mãos postas em oração, seja por necessidade de justiça social, ou seja simplesmente para apontar, cruel e levianamente, o fracasso humano de todos os processos revolucionários?
De dentro dos olhos do Amir eu pensei: será que por algum momento, hoje, em 2010, entre os 18 e os 80,no meio do caminho, eu tenho direito de ignorar qual o meu papel dentro das redes do poder?É possível estar à margem do poder, resitindo a ele, ou serei eu um agente inconsciente de suas artimanhas, servindo a ele à medida que penso que a ele resisto? O teatro não pode mudar o mundo, ok! mas afirmar que "ninguém se interessa mais pelo meu drama" não seria calcular mal meu tamanho?
Ah, esse Heiner Muller!
Alí do meio, da metade do caminho, surgiu Pascal.Apareceu na boca de Mariana sob a água corrente: "Le silence éternel de ces espaces infini m'affraie".

Me lembrei muito de Partner,dirigido por Bernardo Bertolucci em 68.
Por delicadeza do destino, foram os olhos verdes que me fizeram insistir mais uma vez e loca - lo. Influenciadíssimo pela Nouvelle Vague Francesa, Bertollucci fez um filme manifesto. A história é simples: um jovem intelectual italiano se encontra um dia com seu duplo. Esse duplo é o homem de ação que o jovem intelectual não consegue ser. Caótico e impulsivo, esse duplo monta um grupo de teatro que ensaia ousadas intervenções urbanas, uma delas pretendia provocar um grande apagão de algumas horas na cidade de Roma. O filme é lindo,doce, potente e ingênuo, como os olhos do menino de olhos verdes.

Partner é Amir. Lembrei- me também que Bertollucci fez anos mais tarde Os Sonhadores, uma versão fetiche de maio de 68 em que 3 jovens lindíssimos se trancam num apartamento deteriorado, falam de cinema e fazem sexo enquanto Paris queima.

Na saída, Mariana me viu e me disse: -Viu, que nós saimos juntos na "Caras"? e eu respondi sem muita ironia ou complicação: "Viu só que chique?!"
O espetáculo é lindo, meus amigos são incríveis, os discursos.... eu não sei.Confesso que não sei onde eles querem chegar, mas uma coisa é certa: esse grupo, ao contrario de tantos outros, está se mexendo e exibindo desavergonhadamente "os grilhões, que mais do que escravizar - nos, nos cretinizam".

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