quarta-feira, 23 de junho de 2010

Lorca - Patativa Dois poetas da terra

Dinho Lima Flor - Concerto de Ispinho e Fulô / Patativa do Assaré
Desenho de Federico Garcia Lorca

Estou relendo a biografia de Federico Garcia Lorca a quem chamam frequentemente de "poeta da terra Andaluza". Aliás, ele mesmo se auto denominava assim. Há uma passagem linda em sua biografia em que ele narra sua primeira experiência estética. Diz o poeta Andaluz que, quando era criança em Fuente Vaqueros, sua cidade natal, gostava muito de assitir ao trabalho do arado de ferro que perfurava a terra e que se admirava que dela não brotasse o sangue. Já sabia ele que a terra e o corpo humano se ligam indissossiavelmente nas construções mitológicas e poéticas. Um dia, o arado insensível se deteve, encontrou sob a terra algo forte o suficiente para barrar sua passagem: era um antigo mosaico romano. Aquela obra de arte antiquíssima brotava da terra, revelando séculos de civilização sob seus pés.
Lorca narra essa passagem como sendo sua primeira experiência poética. Acredito eu que essa narrativa de um fato ocorrido na infância do poeta é uma síntese de todo o seu ciclo de poemas e tragédias da Andaluzia: poema do Cante Jondo, Romanceiro Gitano, Bodas de Sangue, Yerma e Bernarda Alba.
Aproximar Lorca e Patativa pode parecer um pouco arbitrário ou até mesmo irresponsável e leviano devido às muitas diferenças estéticas, biográficas, geográficas que os colocam aparentemente em espaços estéticos muito diferentes.
Lorca era filho de um rico fazendeiro e foi educado em instituições conceituadas enquanto Patativa era um matuto pobre e semianalfabeto. Lorca estava ligado às vanguardas europeias do início do século, é considerado por muitos um surrealista, (classificação da qual discordo totalmente), e se ligava aos ultraístas, modernistas espanhóis. Já Patativa é um poeta " anacrônico" se tentarmos inseri-lo dentro da história da poesia brasileira. Seu primeiro livro, editado em 1956 segue as premissas da poesia com metro e rima. Patativa ama o jeito clássico de fazer poesia. Foi um parnasiano matuto que inseriu sua poderosíssima poesia rimada na história da poesia brasileira num tempo em que já existiam Drummond, Mário, Oswald etc...
Mas, mesmo conhecendo a distância que os separa, aproxima-los me é irresistível! Os dois foram poetas da terra, principalmente de suas "terras", Cariri e Andaluzia. Patativa cantou Assaré e Serra de Santana e Lorca foi o grande cantor da Andaluzia e principalmente de Granada. Ambos se alimentavam conscientemente da fala de sua região, da poética brotada da fala cotidiana de seu povo. Lorca falava que suas metáforas já estavam prontas na tradição andaluza, nas cantigas de ninar, nas histórias de assombração contadas pelas criadas e Patativa diz :
"toda vez que olho para cima/
vejo um dilúvio de rima/
caindo em riba da terra"
Para ele também a poesia já está alí pronta e cabe a ele revela- lá. Lorca utiliza a herança dos romances e jograis populares, poemas repetidos de boca em boca pelo povo, que contam histórias e fatos pitorescos de um povo ou de uma pessoa em particular. Patativa utiliza o cordel e aprende a amar as palavas ouvindo os cordéis. Utiliza- os e os ultrapassa. Tanto os cordéis como os romances são rimados e são feitos para serem memorizados e repetidos. Muitos viram obras de domínio público. Os poemas do Romancero Gitano são ditos de cor por muitos espanhóis assim como os poemas de Patativa aqui em Assaré.

Lorca canta a opressão dos ciganos andaluzes, sua cultura e a perseguição secular que assola aquele povo. O Romance da Guarda Civil Espanhola é um poema que se transformou em símbolo de resistência durante a Guerra Civil de 36.Já Patativa, canta os migrantes miseráveis, ciganos por necessidade, suas agruras, seu sofrimento no sertão e na cidade grande. A triste Partida é o hino dos migrantes Nordestinos:

" Setembro passou, Outubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus que há de nós!

Ambos eram poetas engajados sem nunca terem se filiado a nenhum partido político. Ambos perceberam a miséria em seu aspecto mais absurdo e a denunciaram. Carregavam em si o germe do inconformismo diante da opressão, mas era um inconformismo poético! Creio que a frase de Paulo Freire " Sou tão comunista quanto Cristo o foi" caberia muito bem na boca de qualquer um dos dois, pois ambos eram extremamente religiosos.
Patativa falou dos Nordestinos em São Paulo e no Rio. Lorca foi um olho Andaluz denunciando as moedas devorando auroras e recemnascidos na cidade de Nova York.
Essa é sem dúvida uma aproximação afetiva e, para ser analisada a fundo, precisaria de um olhar mais especializado que o meu. Patativa viveu muito e é um patrimônio brasileiro, Lorca teve menos sorte...

Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer



Aos artistas de verdade da Cia. São Jorge


A questão do tempo! Fui assistir à peça da Cia. São Jorge de Variedades "Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está, precisa se mexer". Estou com ela deliciosamente entalada em minha goela até agora. Participei como espectador do nascimento da Cia e me considero uma espécie de membro afetivo dela. Nossas histórias, ora paralelas, ora convergentes, que nunca se distanciaram, hoje são ainda mais próximas !
O Texto é baseado em Heiner Muller, autor que nunca me despertou maiores empolgações.
A peça começou ao meio dia. De um lado da plateia estava Amir Haddad, do outro, um belo menino de 18 anos, jovem intelectual de olhos verdes. Um foi forjado e ajudou a forjar as entranhas dos anos 60, criou seu "Tá na Rua", louco, anárquico e revolucionário.O garoto nasceu na década de 90 e podia ser meu filho, mas é só meu aluno. Entre eles estávamos eu na platéia, e meus companheiros atores, Pat, Rogério, Marcello, Georgette, Paula, Mariana , no meio do tempo!

Assisti ao espetáculo com olhos tríplices. Assisti pelos belos olhos verdes do menino, pelos olhos de mil anos de história de Amir, mas meus olhos, meu corpo e minha voz eram principalmente os de Patrícia Guifford, grande atriz, amiga e irmã que, em determinado momento da peça, faz um discurso violento, vestida de Rosa Luxemburgo, gritando palavras de ordem, chamando-nos para a ação. Subiu na mesa, defendeu seu texto que pairava num limbo onde dançavam entre si ironia, romantismo desbragado, uma ponta de tristesa , desespero, incerteza, credulidade e incredulidade e tantas outras coisas.
Nos olhos do menino de olhos verdes havia deslumbramento, nos de Amir Haddad eu não sei. Nos meus, uma sensação angustiante do tempo que passa. Eu era o meio entre o futuro e a história.
Em um determinado momento o Cello grita, parafraseando o Bandido da Luz Vermelha: "a periferia vai explodir! Quem tiver de sapatos não sobra! " Olhei meus sapatos tão bonitinhos e pensei: o que eu faria , meu Deus, se tivesse que gritar tudo isso olhando olhos nos olhos do Amir? Os olhos verdes de 18 anos nos apontam para a força do desejo renovado, para o desejo fácil da sedução,mas e os olhos que fizeram e percorreram anos de história?Como encara- los de frente e clamar por revolução, seja com inocência sagrada, de mãos postas em oração, seja por necessidade de justiça social, ou seja simplesmente para apontar, cruel e levianamente, o fracasso humano de todos os processos revolucionários?
De dentro dos olhos do Amir eu pensei: será que por algum momento, hoje, em 2010, entre os 18 e os 80,no meio do caminho, eu tenho direito de ignorar qual o meu papel dentro das redes do poder?É possível estar à margem do poder, resitindo a ele, ou serei eu um agente inconsciente de suas artimanhas, servindo a ele à medida que penso que a ele resisto? O teatro não pode mudar o mundo, ok! mas afirmar que "ninguém se interessa mais pelo meu drama" não seria calcular mal meu tamanho?
Ah, esse Heiner Muller!
Alí do meio, da metade do caminho, surgiu Pascal.Apareceu na boca de Mariana sob a água corrente: "Le silence éternel de ces espaces infini m'affraie".

Me lembrei muito de Partner,dirigido por Bernardo Bertolucci em 68.
Por delicadeza do destino, foram os olhos verdes que me fizeram insistir mais uma vez e loca - lo. Influenciadíssimo pela Nouvelle Vague Francesa, Bertollucci fez um filme manifesto. A história é simples: um jovem intelectual italiano se encontra um dia com seu duplo. Esse duplo é o homem de ação que o jovem intelectual não consegue ser. Caótico e impulsivo, esse duplo monta um grupo de teatro que ensaia ousadas intervenções urbanas, uma delas pretendia provocar um grande apagão de algumas horas na cidade de Roma. O filme é lindo,doce, potente e ingênuo, como os olhos do menino de olhos verdes.

Partner é Amir. Lembrei- me também que Bertollucci fez anos mais tarde Os Sonhadores, uma versão fetiche de maio de 68 em que 3 jovens lindíssimos se trancam num apartamento deteriorado, falam de cinema e fazem sexo enquanto Paris queima.

Na saída, Mariana me viu e me disse: -Viu, que nós saimos juntos na "Caras"? e eu respondi sem muita ironia ou complicação: "Viu só que chique?!"
O espetáculo é lindo, meus amigos são incríveis, os discursos.... eu não sei.Confesso que não sei onde eles querem chegar, mas uma coisa é certa: esse grupo, ao contrario de tantos outros, está se mexendo e exibindo desavergonhadamente "os grilhões, que mais do que escravizar - nos, nos cretinizam".

terça-feira, 15 de junho de 2010

Adélia ou "essa estranha idéia de família viajando através da carne"

Encontrei em minha estante o primeiro livro de minha vida: "Poesias Infantis"de Olavo Billac. Ganhei - o de presente ainda muito criança. Ele fora de meu pai, e minha avó , Adélia de Freitas Mercadante, que já contava então oitenta anos de idade, lia- o para mim todos os dias. Sempre tive uma memória invejável para poemas e canções, tanto que alguns deles eu ainda sei de cor.
Chorei muito ouvindo - a declamar a história do cachorro plutão, que morria por fidelidade a seu dono, me emocionei ouvindo "o Pássaro Cativo" que recusava- se a cantar longe das matas onde nasceu. Havia também a fábula da boneca esquartejada por duas meninas furiosas que disputavam sua posse, numa adaptação poética da história bíblica de Salomão e as duas prostitutas que disputavam a guarda de uma criança. Os poemas, tristíssimos em sua maioria, buscavam uma espécie de formação ético- estética das crianças.

A boneca
Deixando a bola e a peteca,
Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: "É minha!"
— "É minha!" a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.

Tanto puxaram por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando à bola e à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca . . .



Meu amor à poesia vem de minha avó Adélia, assim como essa leve melancolia que me acompanha, mesmo nas horas mais alegres de meu dia, mesmo nos momentos mais felizes de minha vida.
Creio que esse jeito de ser decorre também do fato de eu ter nascido em Minas Gerais, lugar de alegrias comedidas e de temperamentos quaresmais.
Minha avó Adélia era um temperamento mineiro. Libriana, nascida em Outubro de 1901, era uma típica senhora de formação católica rígida, preocupada com os vizinhos e com a boa reputação de todos. Ela me pegava no colo e recitava para mim poemas e mais poemas. Além dos Bilacs, havia também Augusto dos Anjos. Sim, Augusto dos Anjos! Com sete, oito anos de idade eu já recitava de cor, graças a Adélia, o tão conhecido "a mão que afaga é a mesma que apedreja.".
Estou com o exemplar de "Poesias Infantis" ao lado do meu Lap Top. Minha avó é uma lembrança estranha, ainda próxima e ao mesmo tempo, distante. Passados muitos anos desde sua morte, tenho já que me esforçar um pouco para lembrar seu rosto, mas a sensação de sua presença se torna nítida, quando reconheço em minha trajetória os ecos de Augusto dos Anjos e os sopros de Bilac.




Plutão


Negro, com os olhos em brasa,
Bom, fiel e brincalhão,
Era a alegria da casa
O corajoso Plutão.

Fortíssimo, ágil no salto,
Era o terror dos caminhos,
E duas vezes mais alto
Do que o seu dono Carlinhos.

Jamais à casa chegara
Nem a sombra de um ladrão;
Pois fazia medo a cara
Do destemido Plutão.

Dormia durante o dia,
Mas, quando a noite chegava,
Junto à porta se estendia,
Montando guarda ficava.

Porém Carlinhos, rolando
Com ele às tontas no chão,
Nunca saía chorando
Mordido pelo Plutão . . .

Plutão velava-lhe o sono,
Seguia-o quando acordado:
O seu pequenino dono
Era todo o seu cuidado.

Um dia caíu doente
Carlinhos . . . Junto ao colchão
Vivia constantemente
Triste e abatido, o Plutão.

Vieram muitos doutores,
Em vão. Toda a casa aflita,
Era uma casa de dores,
Era uma casa maldita.

Morreu Carlinhos . . . A um canto,
Gania e ladrava o cão;
E tinha os olhos em pranto,
Como um homem, o Plutão.

Depois, seguiu o menino,
Seguiu-o calado e sério;
Quis ter o mesmo destino:
Não saíu do cemitério.

Foram um dia à procura
Dele. E, esticado no chão,
Junto de uma sepultura,
Acharam morto o Plutão.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A Pantera - Rilke - Trad. Augusto de Campos



A PANTERA
Rainer Maria Rilke
(Trad. Augusto de Campos)

(No Jardin des Plantes, Paris)

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Lindo texto de Ferreira Gullar

Vou falar hoje de um assunto que talvez não seja assunto de crônica, mas, como já disse que ninguém sabe o que é crônica, vou falar assim mesmo. O assunto é o poema, uma tese sobre o poema, coisa que possivelmente não interessa a ninguém e, quem sabe, por isso mesmo eu deva falar dele.

Costumo dizer que o poema não vale nada. Não vale nada no mercado. Pouca gente compraria um poema e, se comprasse, seria barato, ou seja, ao preço do mercado. Não obstante, nem tudo é o mercado. Há mais espaços na vida do que sonha a nossa vã filosofia.

Por exemplo, quando estava eu no exílio, conheci um sujeito, economista, casado com uma linda morena brasileira. Ele e ela freqüentavam regularmente aquelas reuniões um tanto fossentas de exilados. Reuniões que não eram tão alegres quanto os papos no Jangadeiros ou no Vermelhinho, mas era o que tínhamos e, em certas situações, é melhor alguma coisa do que nada. Há divergências, é claro.

Pois bem, nessas reuniões o marido da brasileira bonita, que era talvez chileno ou espanhol, costumava sentar-se ao meu lado e puxar conversa sobre economia. Citava números, estatísticas, percentagens, leis do mercado e eu, sem muita alternativa, escutava. Até chegar o momento azado em que pedia licença a pretexto de ir ao banheiro ou apanhar uma bebida e não voltava mais. E eis que, inesperadamente, me contam que a tal morena brasileira deixara o economista por um argentino. Pensei logo comigo: na próxima reunião, se ele aparecer por lá, vai ser pior ainda, aí é que grudará comigo o tempo todo.

E chegou esse dia. Fui para a reunião disposto a escapar do sujeito a qualquer preço e consegui por algum tempo. Quando já estava no terceiro copo de cerveja, distraí-me e ele se sentou a meu lado. E sabem o que aconteceu? Não falou um só palavra de economia -só falou de poesia, assunto que dominava muito bem. Falou-me de seus poetas preferidos, que eram alguns de língua espanhola, outros franceses, ingleses ou italianos. Sabia de cor poemas de Eliot e de Fernando Pessoa.
- Estou relendo meus poemas queridos, confessou.

E então entendi: é que a morena tinha ido embora e, quando a morena vai embora, meu caro, só a poesia nos socorre. É então que ela se torna necessária. Se tudo corre bem, a economia basta, mas, se a morena se vai, não há economia, nem trigonometria, nem geografia, ecologia, paleontologia que dê jeito. Só mesmo a poesia. Com isso fica demonstrado por que a poesia vale pouco no mercado: trata-se de um bem de consumo conspícuo. Mas, como os poetas não escrevem para ganhar dinheiro, essa pouca valia não os desencoraja.

Esse é um aspecto deste assunto que não interessa a ninguém; o outro aspecto é que, além de valer tão pouco, o poema não é inevitável. Explicando melhor: qualquer poema que tenha sido escrito -ainda que seja "A Divina Comédia"- poderia não ter sido escrito e, além disso, poderia ter sido escrito de outro modo, poderia ser outro!

Vou dar um exemplo doméstico. Certa vez, escrevi um poema inspirado na lembrança de minha casa de infância em São Luís do Maranhão; uma casa antiga, soalho de tábuas corridas e corroídas, com algumas fendas por onde costumavam sumir minhas poucas moedas.

Mas uma manhã caiu-me da mão uma moeda de um cruzado (aquele velho cruzado, aliás velhíssimo cruzado) e desapareceu por uma das fendas do soalho. Decidi recuperá-la: aproveitando o fato de que uma das tábuas do cômodo estava solta, meti-me por baixo do soalho e fui me arrastando no pó negro ali depositado, que talvez por quase um século não visse a luz do sol e exalava insuportável fedor de mofo. Recuperei a moeda, mas nunca mais esqueci aquela aventura. O poema não contava essa história, mas falava da "noite menor sob os pés da família" e da "língua de fogo azul debaixo da casa".

Isso foi em 1970. Meses depois, tive que ir para a clandestinidade e, um ano depois, para o exílio. Fui parar em Moscou. E lá, de repente, ao lembrar-me do poema, verifiquei que o perdera. Inconformado, resolvi escrevê-lo de novo e o consegui, tanto que ele foi publicado no meu livro "Dentro da Noite Veloz", editado em 1975, quando eu já estava em Buenos Aires.

Muito bem. Volto para o Brasil em 1977 e, remexendo velhas pastas que aqui haviam ficado, encontro o poema dado por perdido. Para minha surpresa, era bastante diferente do segundo, escrito em Moscou. O que significa isso? Significa, sem dúvida, que os poemas não têm uma forma inevitável e, como forma e conteúdo são indissociáveis, tampouco seu conteúdo é inevitável. Se, naquele dia em Moscou, eu tivesse encontrado o primeiro poema, não teria escrito o segundo, e aquele ficaria como o único poema possível sobre o tema, conclusão equivocada, conforme acabo de demonstrar, pois, como sugeriu Mallarmé, o poema é um lance de dados que jamais eliminará o acaso.

E digo mais: o poema não é a expressão do que se viveu ou experimentou. Se eu sinto um cheiro de jasmim na noite e escrevo um poema sobre esse fato, o que faço não é expressar tal experiência, mas, na verdade, usá-la como impulso para inventar uma coisa que não existia antes: o poema, o qual se somará a todas as galáxias, planetas, cometas, oceanos e tudo o mais que exista no universo. E o universo será, a partir de então, tudo o que já era mais aquele pequeno agregado de palavras, nascido de um perfume.

Ferreira Gullar

Fonte: Folha Ilustrada - 19.06.2005

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Cariri - Eu meio místico

Às vezes, acho que crer em Deus é mais fácil em determinados lugares, em determinadas paisagens. Esse Deus que conforta, se é que ele existe, necessita de horizontes para se revelar. Precisa do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, das alvoradas e do Pôr-do-Sol. Ah, como Deus é impossível nas metrópoles! Sem horizontes, sem espaços livres, ele se perde atrás dos prédios, dos relógios, dos vidros escurecidos, se confunde com os anúncios gigantescos e coloridos. Da janela de um ônibus lotado às 6 da tarde, fica difícil entrevê-lo, e nos 20 minutos de almoço, ele nem mesmo tem tempo de se esboçar em uma de suas infinitas formas! Uso uma frase de Camille Claudel para falar das cidades:"há sempre alguma coisa de ausente que nos atormenta". A cidade só pode ver Deus em sua forma mais terrível, nas tempestades e catástrofes, na natureza em fúria afirmando nossa pequenez e revelando o ridículo do orgulho humano.




Agora estou em São Paulo. Faz poucas horas, estava aos pés da estátua de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte. Já estive por 4 vezes me apresentando na região do Cariri e foi paixão à primeira vista! É como se eu entendesse tudo que move a vida por lá. Tenho amigos, conheço as ruas e os caminhos, sei negociar preço com os taxistas, dou informações na rua e meu sotaque se modifica depois de algumas horas por lá. Até promessa faço, depois me esqueço do que prometi, mas pago de outra forma.
Do auto do Horto, onde está plantada a aparentemente horrível estátua, pode- se ver Juazeiro, Crato e Barbalha e a serra do Araripe que parece ter sido desenhada no horizonte por um daqueles arquitetos modernistas.

O que faz a beleza do horto são justamente as manifestações de fé, as milhares e milhares de fitas amarradas à imagem do padre, os chumaços de cabelo, as velhas beatas e aquela estética romeira, de santinhos, escapulários e cópias baratas do coração de Jesus com luzinhas coloridas.


Juazeiro do Norte, fundada por romeiros e pelo padre Cícero é uma cidade comercial. Na subida da serra que leva ao horto existe um conjunto de casinhas características da região, coloridas, com as portas sempre abertas, com altares na parede da frente e com gente sentada na porta. Todos fazem questão de nos cumprimentar em sinal de cordialidade. Existe uma doçura irresistível no ar. A cidade respira uma espécie de fé jocosa, de crença malandra, de permanente penitência em festa.
O Crato é uma cidade rica em manifestações culturais.Seus moradores se orgulham de nela terem nascido, chamam - na "Cratinho de açucar", "meu amado Crato"e expressam com frequência, uma espécie de divertido menosprezo histórico pelo Juazeiro.
Barbalha é uma preciosidade. Cidadezinha antiga onde ainda é possível assistir aos ritos dos penitentes.


A foto acima é da casa do Mestre Noza, uma espécie de cooperativa de artesãos, um ponto de cultura onde vários artistas se reúnem, trabalham o dia todo e vendem suas obras. Parece que estamos entrando num universo paralelo. Milhares de figuras de madeira, formas primitivas, bonecos, imagens, todas misturadas numa festa de cores e formas "caoticamente organizadas."

bodas de sangue



Bodas de Sangue no Teatro Ventoforte

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Paciência da criação e fé

PARA PINTAR O RETRATO DE UM PÁSSARO - Jacques Prévert


Primeiro pintar uma gaiola

com a porta aberta,

pintar depois

algo de lindo,

algo de simples,

algo de belo,

algo de útil

para o pássaro

depois dependurar a tela numa árvore

num jardim

num bosque

ou numa floresta

esconder-se atrás da árvore

sem nada dizer

sem se mexer...

Às vezes o pássaro chega logo

mas pode ser também que leve muitos anos

para se decidir.

Não perder a esperança,

esperar,

esperar se preciso durante anos.

A pressa ou a lentidão da chegada do pássaro

nada tendo a ver

com o sucesso do quadro.

Quando o pássaro chegar,

se chegar,

guardar o mais profundo silêncio

esperar que o pássaro entre na gaiola

e quando já estiver lá dentro

fechar lentamente a porta com o pincel

depois

apagar uma a uma todas as grades

tendo cuidado de não tocar numa única pena do pássaro

Fazer depois o desenho da árvore

escolhendo o mais belo galho

para o pássaro

pintar também a folhagem verde e a frescura do vento

a poeira do sol

e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão

e depois esperar que o pássaro queira cantar

Se o pássaro não cantar

mau sinal

sinal de que o quadro é ruim

mas se cantar, bom sinal,

sinal de que pode assiná-lo.

Então você arranca delicadamente

uma das penas do pássaro

e escreve seu nome num canto do quadro

Adélia Prado 6 Religare




Bulha
(...) Como é possível que a nós, mortais, se aumente o brilho nos olhos
porque o vestido é azul e tem um laço?
(Poesia Reunida, p.116.)


Paixão
De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos,não é a bola bonita caminhando
solta no espaço.
(Poesia Reunida, p.199.)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Dinho Lima Flor


O que é um ator popular? Alguém que atua por transbordamento. Suas idéias, seus gestos, suas falas, decorrem necessariamente de sua ânsia irrascível de comunicação com o mundo. Desejo de movimentar o espaço, de abrir as janelas e dançar e cantar e dizer, dizer, dizer....Sua história, seu quintal, suas cantigas de ninar, seus devaneios precisam mostrar- se e encontrar a luz do sol.


Seu resultado de forma imperfeita permite ao espectador enxergar a medula da forma. Sua voz rasgada permite ao público perceber a raiz do canto e do grito, sua dança faz cair a chuva e celebra as noites de lua cheia. A arte é vida e tão necessária quanto o pão nosso de cada dia!