sábado, 23 de outubro de 2010

ARQUIVOS SONOROS: audio-palestras - Ciclo Silêncio dos Intelectuais ...

Vale a pena ouvir. Marilena Chauí é imprescindível!

ARQUIVOS SONOROS: audio-palestras - Ciclo Silêncio dos Intelectuais ...: " audio-palestras - Ciclo Silêncio dos Intelectuais (2005) -em mp3 Descrição: O que houve com os intelectuais, antes tão ativos,..."

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Caio Fernando Abreu para o dia 23 de Outubro

Ouvindo Moon Over Bourbon Street, do Sting.




Sobre todos aqueles que continuam tentando,
Deus, derrama teu Sol
mais luminoso.
Caio Fernando Abreu

O Sol entrou ontem em Libra. E porque tudo é ritual, porque fé, quando não se tem, se inventa, porque Libra é a regência máxima de Vênus, o afeto, porque Libra é o outro (quando se olha e se vê o outro, e de alguma forma tenta-se entrar em alguma espécie de harmonia com ele), e principalmente porque Deus, se é que existe, anda destraído demais, resolvi chamar a atenção dele para algumas coisas. Não que isso possa acordá-lo de seu imenso sono divino, enfastiado de humanos, mas para exercitar o ritual e a fé – e para pedir, mesmo em vão, porque pedir não só é bom, mas às vezes é o que se pode fazer quando tudo vai mal.

Nesse zero grau de Libra, queria pedir a isso que chamamos de Deus um olho bom sobre o planeta terra, e especialmente sobre a cidade de São Paulo. Um olho quente sobre aquele mendigo gelado que acabei de ver sob a marquise do cine Majestic; um olho generoso para a noiva radiosa mais acima. Eu queria o olho bom de Deus derramado sobre as loiras oxigenadas, falsíssimas, o olho cúmplice de Deus sobre as jóias douradas, as cores vibrantes. O olho piedoso de Deus para esses casais que, aos fins de semana, comem pizza com fanta e guaraná pelos restaurantes, e mal se olham enquanto falam coisas como: “você acha que eu devia ter dado o telefone da Catarina à Eliete? – e outro grunhe em resposta.

Deus, põe teu olho amoroso sobre todos que já tiveram um amor, e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem. Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem – nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa.

Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV. Olha bem o rapaz que, absolutamente só, dez vezes repete Moon Over Bourbon Street, na voz de Sting, e chora. Coloca um spot bem brilhante no caminho das garotas performáticas que para pagar o aluguel dão duro como garçonetes pelos bares. Olha também pela multidão sob a marquise do Mappin, enquanto cai a chuva de granizo, pelo motorista de taxi que confessa não Ter mais esperança alguma. Cuida do pintor que queria pintar, mas gasta seu talento pelas redações, pelas agências publicitárias, e joga tua luz no caminho dos escritores que precisam vender barato seu texto- olha por todos aqueles que queria ser outra coisa qualquer a que não a que são, e viver outra vida se não a que vivem.

Não esquece do rapaz viajando de ônibus com seus teclados para fazer show na Capital, deita teu perdão sobre os grupos de terapia e suas elaborações da vida, sobre as moças desempregadas em seus pequenos apartamentos na Bela Vista, sobre os homossexuais tontos de amor não dado, sobre as prostitutas seminuas, sobre os travestis da República do Líbano, sobre os porteiros de prédios comendo sua comida fria nas ruas dos Jardins. Sobre o descaramento, a sede e a humildade, sobre todos que de alguma forma não deram certo (porque, nesse esquema, é sujo dar certo), sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma – sobre esse que sobrevivem a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões.

Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio – Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça. Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo dia sem desistir, envia teu Sol mais luminoso, esse zero grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.

Caio Fernando Abreu, n’O Estado de S. Paulo, 24/09/86.

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quarta-feira, 28 de julho de 2010

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Nine out of ten movie stars make me cry, I'm alive

O Livro de Cabeceira


A Insustentável Leveza do Ser

Os Sonhadores, Dans Paris, Chanson D'amour


Rocco e seus Irmãos

Todo o Ciclo Antoine Doinel


Antes que Anoiteça, Carne Trêmula

Olhos Negros, 8 e Meio

O Acossado


Uma Rua Chamada Pecado

A Leste do Éden, Vidas Amargas, Juventude Transviada


sexta-feira, 9 de julho de 2010

Padre Vieira

Sou totalmente a favor da liberdade de imprensa, liberdade de expressão e etc, etc etc...Mas talvez, o conceito de liberdade carregue em si o germe dos mal entendidos que provoca à sua volta.Sob a bandeira da ética, jornalistas, na busca cotidiana pela audiência, consomem até a última gota do sangue das vítimas, das lagrimas dos familiares, do rosto dos criminosos!!!Aproveitando- se desse gozo perverso de nossa espécie, transformam em mercadoria barata nossa dor mais legítima. A morte da criança, o buraco do metrô, o acidente aéreo, o assassinato brutal da namorada do goleiro, com requintes de um Edgar Allan Poe, tudo explorado até a exaustão, imagens e discursos.
"Pensam que só os Tapuias se comem uns aos outros?Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer.»
Padre Viera
"Mas quem são eles, dizei-me, os saltimbancos, um pouco
mais efêmeros que nós mesmos, desde a infância por alguém torcidos
- por amor de vontade jamais saciada?"
(...)
Anjo, toma,, colhe a erva medicinal de flores singelas!
Modela um vaso e dá- lhe abrigo!Preserva entre as
alegrias não desabrochadas;celebra- a em
carinhosa urna, com uma inscrição florida e inspirada:
Subrisio saltat."

Fragmento da Quinta Elegia de Duino
Rilke
Acima Les Saltimbanques de Picasso
Abaixo o Castelo de Duino em Trieste,noAdriático, Itália.





quinta-feira, 8 de julho de 2010

Cartas a um jovem poeta - kalepa ta kala




kalepa ta kala

Li o livro "Cartas a um Jovem Poeta" há alguns anos atrás. Morava ainda em Belo Horizonte e tinha uma espécie de sede errática de conhecimento. Aos 18 anos de idade, enxergava à minha frente uma trajetória de vida milimétricamente planejada: medicina, depois psiquiatria, ou melhor, psicanálise freudiana otodoxa. Mas no fundo no fundo, desejava mesmo era ser filósofo ou poeta.
Escolhi o livro pelo título em uma banquinha na PUC de BH. Não sabia do que se tratava, nunca ouvira falar em Rilke, mas era jovem e, secretamente, considerava - me poeta. Devorei os conselhos do velho poeta ao jovem Franz Xaver Kappus.
O futuro não foi bem da maneira que eu planejara..... Hoje sou ator e músico. A psicanálise e a filosofia continuam sendo paixões ( não me tornei analista, mas fui, por 8 anos, paciente)e companheiras fiéis em meu cotidiano.
Recentemente comprei uma edição de bolso a dez reais em uma banca na av. Paulista. Uma leitura rápida, agradável e emocionante. De minha primeira leitura me sobravam ainda algumas lembranças, conselhos práticos acima de tudo: não escrever poemas de amor, ligar- se às experiências da infância e, principalmente, só escrever se for absolutamente indispensável escrever!
"Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite:"Sou mesmo forçado a escrever?" Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão."

Nessa segunda leitura, a relação que Rilke estabelece entre solidão e singularidade foi o ponto que mais me chamou a atenção.
Ele aconselha Kappus a cultivar a solidão, deixa- la crescer, conviver com ela, pois só assim seria possível lidar com a vida de uma maneira verdadeira, escapando aos lugares comuns, às soluções óbvias elaboradas pela coletividade, aos estereótipos.Só assim seria possível atingir a verdade poética. Mesmo no amor, que Rilke diz ser o que há de mais difícil na experiência humana, deve- se buscar fugir às soluções legitimadas pela coletividade. Só assim a relação a dois, seus mistérios e delícias, pode ser elaborada de maneira única, sem que se necessite recorrer às formulas pré- fabricas, aos lugares comuns do bom senso.Rilke chega a afirmar que os jovens não amam verdadeiramente e que mesmo quando contestam as regras estabelecidas, fazem -no, na maioria das vezes, reafirmando lugares comuns.
Para esse grande poeta, o exercício da solidão possibilita o florescimento do estilo.
Não é fácil. Trata- se do exercício da dor de estar só, para que se possa dizer a existência do ponto de vista dessa solidão. Essa tarefa hercúlea é, algumas vezes, insuportável. Mas como diz Platão, recorrendo à um ditado grego,Kalepa ta Kala, o belo é difícil.

terça-feira, 6 de julho de 2010

El romance de la luna, luna

A primeira foto é do Tarô de Salvador Dalí. Romancero Gitano!



Ciência, paciência e fé segundo Jacques Prévert

O mais belo e simples poema sobre o imponderável nos processos de criação artística. Sobre essa palavra em desuso: essência. Depois da ciência e do cuidado, a paciência e a fé!


PARA PINTAR O RETRATO DE UM PÁSSARO - Jacques Prévert


Primeiro pintar uma gaiola

com a porta aberta,

pintar depois

algo de lindo,

algo de simples,

algo de belo,

algo de útil

para o pássaro

depois dependurar a tela numa árvore

num jardim

num bosque

ou numa floresta

esconder-se atrás da árvore

sem nada dizer

sem se mexer...

Às vezes o pássaro chega logo

mas pode ser também que leve muitos anos

para se decidir.

Não perder a esperança,

esperar,

esperar se preciso durante anos.

A pressa ou a lentidão da chegada do pássaro

nada tendo a ver

com o sucesso do quadro.

Quando o pássaro chegar,

se chegar,

guardar o mais profundo silêncio

esperar que o pássaro entre na gaiola

e quando já estiver lá dentro

fechar lentamente a porta com o pincel

depois

apagar uma a uma todas as grades

tendo cuidado de não tocar numa única pena do pássaro

Fazer depois o desenho da árvore

escolhendo o mais belo galho

para o pássaro

pintar também a folhagem verde e a frescura do vento

a poeira do sol

e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão

e depois esperar que o pássaro queira cantar

Se o pássaro não cantar

mau sinal

sinal de que o quadro é ruim

mas se cantar, bom sinal,

sinal de que pode assiná-lo.

Então você arranca delicadamente

uma das penas do pássaro

e escreve seu nome num canto do quadro"




Sou louco pelos poemas de Jacques Prévert.São de uma delicadeza imensa!Foi ele o compositor de "Folhas Mortas", aqui interpretado por Yves Montand




Ele escreveu um livro lindo chamado "Paroles", na NET há muitos de seus poemas disponíveis.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Imagens e devaneios

Um pouquinho em frente à NET, fuçando aleatoriamente, reencontrei três imagens que há muito tempo eu não via. Vez por outra eu me lembro delas, nos momentos em que me deparo com situações em que a precária condição humana, frente à forças muito maiores, se afirma. Me lembro da primeira vez que as vi, e da emoção estranha que senti.

A primeira eu chamo de "O pas de deux da Praça da Paz". Um estudante chinês entra em frente a uma fila de tanques e barra sua passagem. A continuidade é impressionante: o tanque desvia e o rapaz desvia, o tanque desvia novamente e o rapaz mais uma vez o desafia.

A atualização de um mito, dança ritual entre David e Golias.

Essa cena aconteceu em 1989 e ficou conhecida como o Massacre da Praça da Paz Celestial.Estudantes protestavam contra a lei marcial imposta pelo Partido Comunista Chinês.

Tirado da Wikpédia:
"No dia 5 de Junho, um jovem solitário e desarmado invade a Praça da Paz Celestial e anonimamente faz parar uma fileira de tanques de guerra. O fotógrafo Jeff Widener, da Associated Press, registrou o momento e a imagem ganhou os principais jornais do mundo. O rapaz, que ficou conhecido como "o rebelde desconhecido" ou o homem dos tanques" foi eleito pela revista Time como uma das pessoas mais influentes do século XX. Sua identidade e seu paradeiro são desconhecidos até hoje."

A segunda imagem mostra Dercy Gonçalves aos 82 anos de idade, de peitos à mostra no desfile da Viradouro em 91. Tenho a impressão que alí, Dercy era a Grande Mãe de todos os brasileiros, assim como o parto de Macunaíma, feito no cinema por Grande Otelo, é ,para mim, nossa imagem fundadora . "Velha Dama indigna", nossa mãe, Dercy! Dercy afirma nosso jeito de ser, nosso jeito de atuar, a alegria desmedida e sem vergonha.Dercy afirma a vida!!!!

A outra imagem é de um quadro de Bruegel que mostra um cego conduzindo uma fila de cegos. O primeiro acaba de tropeçar, o que significa que tropeçarão todos os outros.

Me remete imediatamente a esse pensamento um pouco assustador de Pascal:
"Ante a cegueira e a miséria do homem, diante do universo mudo, do homem sem luz, abandonado a si mesmo e como que perdido nesse rincão do universo, sem consciência de quem o colocou aí, nem do que veio fazer, nem do que lhe acontecerá depois da morte, ante o homem incapaz de qualquer conhecimento, invade-me o terror e sinto-me como alguém que levassem, durante o sono, para uma ilha deserta, e espantosa, e aí despertasse ignorante de seu paradeiro e impossibilitado de evadir-se. Vejo outras pessoas ao meu lado, aparentemente iguais a mim; pergunto-lhes se se acham mais instruídas que eu, e eu me respondo palo negativo; no entanto, esses miseráveis extraviados se apegam aos prazeres que encontram em torno de si. Quanto a mim, não consigo afeiçoar-me a tais objetos e, considerando que no que vejo há mais aparência do que outra coisa, procuro descobrir se Deus não deixou algum sinal próprio.

● Só sei que o silencio eterno desse espaço infinito me apavora....

● Quantos reinos nos ignoram...!

Porque esse mundo finito e belo é tão difícil de se encontrar a felicidade?Por que são limitados meus conhecimentos, minha estatura, a duração de minha vida a cem anos e não a mil? Que motivos levaram a natureza a fazer-me assim, a escolher esse número em lugar de outro qualquer, desde que na infinidade dos números não há razões para tal preferência, nem nada que seja preferível a nada? "

Três imagens em meio a um caos de banalidades, das infinitas bobagens registradas e propagadas por aí.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Lorca - Patativa Dois poetas da terra

Dinho Lima Flor - Concerto de Ispinho e Fulô / Patativa do Assaré
Desenho de Federico Garcia Lorca

Estou relendo a biografia de Federico Garcia Lorca a quem chamam frequentemente de "poeta da terra Andaluza". Aliás, ele mesmo se auto denominava assim. Há uma passagem linda em sua biografia em que ele narra sua primeira experiência estética. Diz o poeta Andaluz que, quando era criança em Fuente Vaqueros, sua cidade natal, gostava muito de assitir ao trabalho do arado de ferro que perfurava a terra e que se admirava que dela não brotasse o sangue. Já sabia ele que a terra e o corpo humano se ligam indissossiavelmente nas construções mitológicas e poéticas. Um dia, o arado insensível se deteve, encontrou sob a terra algo forte o suficiente para barrar sua passagem: era um antigo mosaico romano. Aquela obra de arte antiquíssima brotava da terra, revelando séculos de civilização sob seus pés.
Lorca narra essa passagem como sendo sua primeira experiência poética. Acredito eu que essa narrativa de um fato ocorrido na infância do poeta é uma síntese de todo o seu ciclo de poemas e tragédias da Andaluzia: poema do Cante Jondo, Romanceiro Gitano, Bodas de Sangue, Yerma e Bernarda Alba.
Aproximar Lorca e Patativa pode parecer um pouco arbitrário ou até mesmo irresponsável e leviano devido às muitas diferenças estéticas, biográficas, geográficas que os colocam aparentemente em espaços estéticos muito diferentes.
Lorca era filho de um rico fazendeiro e foi educado em instituições conceituadas enquanto Patativa era um matuto pobre e semianalfabeto. Lorca estava ligado às vanguardas europeias do início do século, é considerado por muitos um surrealista, (classificação da qual discordo totalmente), e se ligava aos ultraístas, modernistas espanhóis. Já Patativa é um poeta " anacrônico" se tentarmos inseri-lo dentro da história da poesia brasileira. Seu primeiro livro, editado em 1956 segue as premissas da poesia com metro e rima. Patativa ama o jeito clássico de fazer poesia. Foi um parnasiano matuto que inseriu sua poderosíssima poesia rimada na história da poesia brasileira num tempo em que já existiam Drummond, Mário, Oswald etc...
Mas, mesmo conhecendo a distância que os separa, aproxima-los me é irresistível! Os dois foram poetas da terra, principalmente de suas "terras", Cariri e Andaluzia. Patativa cantou Assaré e Serra de Santana e Lorca foi o grande cantor da Andaluzia e principalmente de Granada. Ambos se alimentavam conscientemente da fala de sua região, da poética brotada da fala cotidiana de seu povo. Lorca falava que suas metáforas já estavam prontas na tradição andaluza, nas cantigas de ninar, nas histórias de assombração contadas pelas criadas e Patativa diz :
"toda vez que olho para cima/
vejo um dilúvio de rima/
caindo em riba da terra"
Para ele também a poesia já está alí pronta e cabe a ele revela- lá. Lorca utiliza a herança dos romances e jograis populares, poemas repetidos de boca em boca pelo povo, que contam histórias e fatos pitorescos de um povo ou de uma pessoa em particular. Patativa utiliza o cordel e aprende a amar as palavas ouvindo os cordéis. Utiliza- os e os ultrapassa. Tanto os cordéis como os romances são rimados e são feitos para serem memorizados e repetidos. Muitos viram obras de domínio público. Os poemas do Romancero Gitano são ditos de cor por muitos espanhóis assim como os poemas de Patativa aqui em Assaré.

Lorca canta a opressão dos ciganos andaluzes, sua cultura e a perseguição secular que assola aquele povo. O Romance da Guarda Civil Espanhola é um poema que se transformou em símbolo de resistência durante a Guerra Civil de 36.Já Patativa, canta os migrantes miseráveis, ciganos por necessidade, suas agruras, seu sofrimento no sertão e na cidade grande. A triste Partida é o hino dos migrantes Nordestinos:

" Setembro passou, Outubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus que há de nós!

Ambos eram poetas engajados sem nunca terem se filiado a nenhum partido político. Ambos perceberam a miséria em seu aspecto mais absurdo e a denunciaram. Carregavam em si o germe do inconformismo diante da opressão, mas era um inconformismo poético! Creio que a frase de Paulo Freire " Sou tão comunista quanto Cristo o foi" caberia muito bem na boca de qualquer um dos dois, pois ambos eram extremamente religiosos.
Patativa falou dos Nordestinos em São Paulo e no Rio. Lorca foi um olho Andaluz denunciando as moedas devorando auroras e recemnascidos na cidade de Nova York.
Essa é sem dúvida uma aproximação afetiva e, para ser analisada a fundo, precisaria de um olhar mais especializado que o meu. Patativa viveu muito e é um patrimônio brasileiro, Lorca teve menos sorte...

Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer



Aos artistas de verdade da Cia. São Jorge


A questão do tempo! Fui assistir à peça da Cia. São Jorge de Variedades "Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está, precisa se mexer". Estou com ela deliciosamente entalada em minha goela até agora. Participei como espectador do nascimento da Cia e me considero uma espécie de membro afetivo dela. Nossas histórias, ora paralelas, ora convergentes, que nunca se distanciaram, hoje são ainda mais próximas !
O Texto é baseado em Heiner Muller, autor que nunca me despertou maiores empolgações.
A peça começou ao meio dia. De um lado da plateia estava Amir Haddad, do outro, um belo menino de 18 anos, jovem intelectual de olhos verdes. Um foi forjado e ajudou a forjar as entranhas dos anos 60, criou seu "Tá na Rua", louco, anárquico e revolucionário.O garoto nasceu na década de 90 e podia ser meu filho, mas é só meu aluno. Entre eles estávamos eu na platéia, e meus companheiros atores, Pat, Rogério, Marcello, Georgette, Paula, Mariana , no meio do tempo!

Assisti ao espetáculo com olhos tríplices. Assisti pelos belos olhos verdes do menino, pelos olhos de mil anos de história de Amir, mas meus olhos, meu corpo e minha voz eram principalmente os de Patrícia Guifford, grande atriz, amiga e irmã que, em determinado momento da peça, faz um discurso violento, vestida de Rosa Luxemburgo, gritando palavras de ordem, chamando-nos para a ação. Subiu na mesa, defendeu seu texto que pairava num limbo onde dançavam entre si ironia, romantismo desbragado, uma ponta de tristesa , desespero, incerteza, credulidade e incredulidade e tantas outras coisas.
Nos olhos do menino de olhos verdes havia deslumbramento, nos de Amir Haddad eu não sei. Nos meus, uma sensação angustiante do tempo que passa. Eu era o meio entre o futuro e a história.
Em um determinado momento o Cello grita, parafraseando o Bandido da Luz Vermelha: "a periferia vai explodir! Quem tiver de sapatos não sobra! " Olhei meus sapatos tão bonitinhos e pensei: o que eu faria , meu Deus, se tivesse que gritar tudo isso olhando olhos nos olhos do Amir? Os olhos verdes de 18 anos nos apontam para a força do desejo renovado, para o desejo fácil da sedução,mas e os olhos que fizeram e percorreram anos de história?Como encara- los de frente e clamar por revolução, seja com inocência sagrada, de mãos postas em oração, seja por necessidade de justiça social, ou seja simplesmente para apontar, cruel e levianamente, o fracasso humano de todos os processos revolucionários?
De dentro dos olhos do Amir eu pensei: será que por algum momento, hoje, em 2010, entre os 18 e os 80,no meio do caminho, eu tenho direito de ignorar qual o meu papel dentro das redes do poder?É possível estar à margem do poder, resitindo a ele, ou serei eu um agente inconsciente de suas artimanhas, servindo a ele à medida que penso que a ele resisto? O teatro não pode mudar o mundo, ok! mas afirmar que "ninguém se interessa mais pelo meu drama" não seria calcular mal meu tamanho?
Ah, esse Heiner Muller!
Alí do meio, da metade do caminho, surgiu Pascal.Apareceu na boca de Mariana sob a água corrente: "Le silence éternel de ces espaces infini m'affraie".

Me lembrei muito de Partner,dirigido por Bernardo Bertolucci em 68.
Por delicadeza do destino, foram os olhos verdes que me fizeram insistir mais uma vez e loca - lo. Influenciadíssimo pela Nouvelle Vague Francesa, Bertollucci fez um filme manifesto. A história é simples: um jovem intelectual italiano se encontra um dia com seu duplo. Esse duplo é o homem de ação que o jovem intelectual não consegue ser. Caótico e impulsivo, esse duplo monta um grupo de teatro que ensaia ousadas intervenções urbanas, uma delas pretendia provocar um grande apagão de algumas horas na cidade de Roma. O filme é lindo,doce, potente e ingênuo, como os olhos do menino de olhos verdes.

Partner é Amir. Lembrei- me também que Bertollucci fez anos mais tarde Os Sonhadores, uma versão fetiche de maio de 68 em que 3 jovens lindíssimos se trancam num apartamento deteriorado, falam de cinema e fazem sexo enquanto Paris queima.

Na saída, Mariana me viu e me disse: -Viu, que nós saimos juntos na "Caras"? e eu respondi sem muita ironia ou complicação: "Viu só que chique?!"
O espetáculo é lindo, meus amigos são incríveis, os discursos.... eu não sei.Confesso que não sei onde eles querem chegar, mas uma coisa é certa: esse grupo, ao contrario de tantos outros, está se mexendo e exibindo desavergonhadamente "os grilhões, que mais do que escravizar - nos, nos cretinizam".

terça-feira, 15 de junho de 2010

Adélia ou "essa estranha idéia de família viajando através da carne"

Encontrei em minha estante o primeiro livro de minha vida: "Poesias Infantis"de Olavo Billac. Ganhei - o de presente ainda muito criança. Ele fora de meu pai, e minha avó , Adélia de Freitas Mercadante, que já contava então oitenta anos de idade, lia- o para mim todos os dias. Sempre tive uma memória invejável para poemas e canções, tanto que alguns deles eu ainda sei de cor.
Chorei muito ouvindo - a declamar a história do cachorro plutão, que morria por fidelidade a seu dono, me emocionei ouvindo "o Pássaro Cativo" que recusava- se a cantar longe das matas onde nasceu. Havia também a fábula da boneca esquartejada por duas meninas furiosas que disputavam sua posse, numa adaptação poética da história bíblica de Salomão e as duas prostitutas que disputavam a guarda de uma criança. Os poemas, tristíssimos em sua maioria, buscavam uma espécie de formação ético- estética das crianças.

A boneca
Deixando a bola e a peteca,
Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: "É minha!"
— "É minha!" a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.

Tanto puxaram por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando à bola e à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca . . .



Meu amor à poesia vem de minha avó Adélia, assim como essa leve melancolia que me acompanha, mesmo nas horas mais alegres de meu dia, mesmo nos momentos mais felizes de minha vida.
Creio que esse jeito de ser decorre também do fato de eu ter nascido em Minas Gerais, lugar de alegrias comedidas e de temperamentos quaresmais.
Minha avó Adélia era um temperamento mineiro. Libriana, nascida em Outubro de 1901, era uma típica senhora de formação católica rígida, preocupada com os vizinhos e com a boa reputação de todos. Ela me pegava no colo e recitava para mim poemas e mais poemas. Além dos Bilacs, havia também Augusto dos Anjos. Sim, Augusto dos Anjos! Com sete, oito anos de idade eu já recitava de cor, graças a Adélia, o tão conhecido "a mão que afaga é a mesma que apedreja.".
Estou com o exemplar de "Poesias Infantis" ao lado do meu Lap Top. Minha avó é uma lembrança estranha, ainda próxima e ao mesmo tempo, distante. Passados muitos anos desde sua morte, tenho já que me esforçar um pouco para lembrar seu rosto, mas a sensação de sua presença se torna nítida, quando reconheço em minha trajetória os ecos de Augusto dos Anjos e os sopros de Bilac.




Plutão


Negro, com os olhos em brasa,
Bom, fiel e brincalhão,
Era a alegria da casa
O corajoso Plutão.

Fortíssimo, ágil no salto,
Era o terror dos caminhos,
E duas vezes mais alto
Do que o seu dono Carlinhos.

Jamais à casa chegara
Nem a sombra de um ladrão;
Pois fazia medo a cara
Do destemido Plutão.

Dormia durante o dia,
Mas, quando a noite chegava,
Junto à porta se estendia,
Montando guarda ficava.

Porém Carlinhos, rolando
Com ele às tontas no chão,
Nunca saía chorando
Mordido pelo Plutão . . .

Plutão velava-lhe o sono,
Seguia-o quando acordado:
O seu pequenino dono
Era todo o seu cuidado.

Um dia caíu doente
Carlinhos . . . Junto ao colchão
Vivia constantemente
Triste e abatido, o Plutão.

Vieram muitos doutores,
Em vão. Toda a casa aflita,
Era uma casa de dores,
Era uma casa maldita.

Morreu Carlinhos . . . A um canto,
Gania e ladrava o cão;
E tinha os olhos em pranto,
Como um homem, o Plutão.

Depois, seguiu o menino,
Seguiu-o calado e sério;
Quis ter o mesmo destino:
Não saíu do cemitério.

Foram um dia à procura
Dele. E, esticado no chão,
Junto de uma sepultura,
Acharam morto o Plutão.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A Pantera - Rilke - Trad. Augusto de Campos



A PANTERA
Rainer Maria Rilke
(Trad. Augusto de Campos)

(No Jardin des Plantes, Paris)

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Lindo texto de Ferreira Gullar

Vou falar hoje de um assunto que talvez não seja assunto de crônica, mas, como já disse que ninguém sabe o que é crônica, vou falar assim mesmo. O assunto é o poema, uma tese sobre o poema, coisa que possivelmente não interessa a ninguém e, quem sabe, por isso mesmo eu deva falar dele.

Costumo dizer que o poema não vale nada. Não vale nada no mercado. Pouca gente compraria um poema e, se comprasse, seria barato, ou seja, ao preço do mercado. Não obstante, nem tudo é o mercado. Há mais espaços na vida do que sonha a nossa vã filosofia.

Por exemplo, quando estava eu no exílio, conheci um sujeito, economista, casado com uma linda morena brasileira. Ele e ela freqüentavam regularmente aquelas reuniões um tanto fossentas de exilados. Reuniões que não eram tão alegres quanto os papos no Jangadeiros ou no Vermelhinho, mas era o que tínhamos e, em certas situações, é melhor alguma coisa do que nada. Há divergências, é claro.

Pois bem, nessas reuniões o marido da brasileira bonita, que era talvez chileno ou espanhol, costumava sentar-se ao meu lado e puxar conversa sobre economia. Citava números, estatísticas, percentagens, leis do mercado e eu, sem muita alternativa, escutava. Até chegar o momento azado em que pedia licença a pretexto de ir ao banheiro ou apanhar uma bebida e não voltava mais. E eis que, inesperadamente, me contam que a tal morena brasileira deixara o economista por um argentino. Pensei logo comigo: na próxima reunião, se ele aparecer por lá, vai ser pior ainda, aí é que grudará comigo o tempo todo.

E chegou esse dia. Fui para a reunião disposto a escapar do sujeito a qualquer preço e consegui por algum tempo. Quando já estava no terceiro copo de cerveja, distraí-me e ele se sentou a meu lado. E sabem o que aconteceu? Não falou um só palavra de economia -só falou de poesia, assunto que dominava muito bem. Falou-me de seus poetas preferidos, que eram alguns de língua espanhola, outros franceses, ingleses ou italianos. Sabia de cor poemas de Eliot e de Fernando Pessoa.
- Estou relendo meus poemas queridos, confessou.

E então entendi: é que a morena tinha ido embora e, quando a morena vai embora, meu caro, só a poesia nos socorre. É então que ela se torna necessária. Se tudo corre bem, a economia basta, mas, se a morena se vai, não há economia, nem trigonometria, nem geografia, ecologia, paleontologia que dê jeito. Só mesmo a poesia. Com isso fica demonstrado por que a poesia vale pouco no mercado: trata-se de um bem de consumo conspícuo. Mas, como os poetas não escrevem para ganhar dinheiro, essa pouca valia não os desencoraja.

Esse é um aspecto deste assunto que não interessa a ninguém; o outro aspecto é que, além de valer tão pouco, o poema não é inevitável. Explicando melhor: qualquer poema que tenha sido escrito -ainda que seja "A Divina Comédia"- poderia não ter sido escrito e, além disso, poderia ter sido escrito de outro modo, poderia ser outro!

Vou dar um exemplo doméstico. Certa vez, escrevi um poema inspirado na lembrança de minha casa de infância em São Luís do Maranhão; uma casa antiga, soalho de tábuas corridas e corroídas, com algumas fendas por onde costumavam sumir minhas poucas moedas.

Mas uma manhã caiu-me da mão uma moeda de um cruzado (aquele velho cruzado, aliás velhíssimo cruzado) e desapareceu por uma das fendas do soalho. Decidi recuperá-la: aproveitando o fato de que uma das tábuas do cômodo estava solta, meti-me por baixo do soalho e fui me arrastando no pó negro ali depositado, que talvez por quase um século não visse a luz do sol e exalava insuportável fedor de mofo. Recuperei a moeda, mas nunca mais esqueci aquela aventura. O poema não contava essa história, mas falava da "noite menor sob os pés da família" e da "língua de fogo azul debaixo da casa".

Isso foi em 1970. Meses depois, tive que ir para a clandestinidade e, um ano depois, para o exílio. Fui parar em Moscou. E lá, de repente, ao lembrar-me do poema, verifiquei que o perdera. Inconformado, resolvi escrevê-lo de novo e o consegui, tanto que ele foi publicado no meu livro "Dentro da Noite Veloz", editado em 1975, quando eu já estava em Buenos Aires.

Muito bem. Volto para o Brasil em 1977 e, remexendo velhas pastas que aqui haviam ficado, encontro o poema dado por perdido. Para minha surpresa, era bastante diferente do segundo, escrito em Moscou. O que significa isso? Significa, sem dúvida, que os poemas não têm uma forma inevitável e, como forma e conteúdo são indissociáveis, tampouco seu conteúdo é inevitável. Se, naquele dia em Moscou, eu tivesse encontrado o primeiro poema, não teria escrito o segundo, e aquele ficaria como o único poema possível sobre o tema, conclusão equivocada, conforme acabo de demonstrar, pois, como sugeriu Mallarmé, o poema é um lance de dados que jamais eliminará o acaso.

E digo mais: o poema não é a expressão do que se viveu ou experimentou. Se eu sinto um cheiro de jasmim na noite e escrevo um poema sobre esse fato, o que faço não é expressar tal experiência, mas, na verdade, usá-la como impulso para inventar uma coisa que não existia antes: o poema, o qual se somará a todas as galáxias, planetas, cometas, oceanos e tudo o mais que exista no universo. E o universo será, a partir de então, tudo o que já era mais aquele pequeno agregado de palavras, nascido de um perfume.

Ferreira Gullar

Fonte: Folha Ilustrada - 19.06.2005

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Cariri - Eu meio místico

Às vezes, acho que crer em Deus é mais fácil em determinados lugares, em determinadas paisagens. Esse Deus que conforta, se é que ele existe, necessita de horizontes para se revelar. Precisa do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, das alvoradas e do Pôr-do-Sol. Ah, como Deus é impossível nas metrópoles! Sem horizontes, sem espaços livres, ele se perde atrás dos prédios, dos relógios, dos vidros escurecidos, se confunde com os anúncios gigantescos e coloridos. Da janela de um ônibus lotado às 6 da tarde, fica difícil entrevê-lo, e nos 20 minutos de almoço, ele nem mesmo tem tempo de se esboçar em uma de suas infinitas formas! Uso uma frase de Camille Claudel para falar das cidades:"há sempre alguma coisa de ausente que nos atormenta". A cidade só pode ver Deus em sua forma mais terrível, nas tempestades e catástrofes, na natureza em fúria afirmando nossa pequenez e revelando o ridículo do orgulho humano.




Agora estou em São Paulo. Faz poucas horas, estava aos pés da estátua de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte. Já estive por 4 vezes me apresentando na região do Cariri e foi paixão à primeira vista! É como se eu entendesse tudo que move a vida por lá. Tenho amigos, conheço as ruas e os caminhos, sei negociar preço com os taxistas, dou informações na rua e meu sotaque se modifica depois de algumas horas por lá. Até promessa faço, depois me esqueço do que prometi, mas pago de outra forma.
Do auto do Horto, onde está plantada a aparentemente horrível estátua, pode- se ver Juazeiro, Crato e Barbalha e a serra do Araripe que parece ter sido desenhada no horizonte por um daqueles arquitetos modernistas.

O que faz a beleza do horto são justamente as manifestações de fé, as milhares e milhares de fitas amarradas à imagem do padre, os chumaços de cabelo, as velhas beatas e aquela estética romeira, de santinhos, escapulários e cópias baratas do coração de Jesus com luzinhas coloridas.


Juazeiro do Norte, fundada por romeiros e pelo padre Cícero é uma cidade comercial. Na subida da serra que leva ao horto existe um conjunto de casinhas características da região, coloridas, com as portas sempre abertas, com altares na parede da frente e com gente sentada na porta. Todos fazem questão de nos cumprimentar em sinal de cordialidade. Existe uma doçura irresistível no ar. A cidade respira uma espécie de fé jocosa, de crença malandra, de permanente penitência em festa.
O Crato é uma cidade rica em manifestações culturais.Seus moradores se orgulham de nela terem nascido, chamam - na "Cratinho de açucar", "meu amado Crato"e expressam com frequência, uma espécie de divertido menosprezo histórico pelo Juazeiro.
Barbalha é uma preciosidade. Cidadezinha antiga onde ainda é possível assistir aos ritos dos penitentes.


A foto acima é da casa do Mestre Noza, uma espécie de cooperativa de artesãos, um ponto de cultura onde vários artistas se reúnem, trabalham o dia todo e vendem suas obras. Parece que estamos entrando num universo paralelo. Milhares de figuras de madeira, formas primitivas, bonecos, imagens, todas misturadas numa festa de cores e formas "caoticamente organizadas."

bodas de sangue



Bodas de Sangue no Teatro Ventoforte

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Paciência da criação e fé

PARA PINTAR O RETRATO DE UM PÁSSARO - Jacques Prévert


Primeiro pintar uma gaiola

com a porta aberta,

pintar depois

algo de lindo,

algo de simples,

algo de belo,

algo de útil

para o pássaro

depois dependurar a tela numa árvore

num jardim

num bosque

ou numa floresta

esconder-se atrás da árvore

sem nada dizer

sem se mexer...

Às vezes o pássaro chega logo

mas pode ser também que leve muitos anos

para se decidir.

Não perder a esperança,

esperar,

esperar se preciso durante anos.

A pressa ou a lentidão da chegada do pássaro

nada tendo a ver

com o sucesso do quadro.

Quando o pássaro chegar,

se chegar,

guardar o mais profundo silêncio

esperar que o pássaro entre na gaiola

e quando já estiver lá dentro

fechar lentamente a porta com o pincel

depois

apagar uma a uma todas as grades

tendo cuidado de não tocar numa única pena do pássaro

Fazer depois o desenho da árvore

escolhendo o mais belo galho

para o pássaro

pintar também a folhagem verde e a frescura do vento

a poeira do sol

e o barulho dos insetos pelo capim no calor do verão

e depois esperar que o pássaro queira cantar

Se o pássaro não cantar

mau sinal

sinal de que o quadro é ruim

mas se cantar, bom sinal,

sinal de que pode assiná-lo.

Então você arranca delicadamente

uma das penas do pássaro

e escreve seu nome num canto do quadro

Adélia Prado 6 Religare




Bulha
(...) Como é possível que a nós, mortais, se aumente o brilho nos olhos
porque o vestido é azul e tem um laço?
(Poesia Reunida, p.116.)


Paixão
De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos,não é a bola bonita caminhando
solta no espaço.
(Poesia Reunida, p.199.)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Dinho Lima Flor


O que é um ator popular? Alguém que atua por transbordamento. Suas idéias, seus gestos, suas falas, decorrem necessariamente de sua ânsia irrascível de comunicação com o mundo. Desejo de movimentar o espaço, de abrir as janelas e dançar e cantar e dizer, dizer, dizer....Sua história, seu quintal, suas cantigas de ninar, seus devaneios precisam mostrar- se e encontrar a luz do sol.


Seu resultado de forma imperfeita permite ao espectador enxergar a medula da forma. Sua voz rasgada permite ao público perceber a raiz do canto e do grito, sua dança faz cair a chuva e celebra as noites de lua cheia. A arte é vida e tão necessária quanto o pão nosso de cada dia!


segunda-feira, 17 de maio de 2010

Zizek! o direito a não gozar!

Estou completamente apaixonado por esse esloveno! Esse texto faz parte da revista FILOSOFIA para ensino de segundo grau!Acho tão fundamental essa linha de raciocínio!

"Zizek comenta que a sociedade hoje imputa tamanha sede de prazer aos indivíduos que o problema acaba por ser outro: a redescoberta do não prazer. "De um lado, há hoje um problema com o fracasso das ordens simbólicas - do 'Grande Outro', como diz Lacan. Isso conduz a um regime de interiorização das regras, e então, segundo Freud, a uma hipertrofia do Superego; e, por via de consequência, uma dilaceração ou um raquitismo da moral. Ora, como Lacan notou, o superego funciona como imperativo de gozo e também como interdito. A consequência paradoxal e trágica é uma corrida desenfreada ao gozo que acaba, evidentemente, na impossibilidade de gozar, pois o superego exige cada vez mais. A psicanálise tem aqui um papel essencial a desempenhar. Todos os outros discursos adquirem a forma de injunção para gozar, para buscar a felicidade. A psicanálise é um discurso que não impede de gozar, mas que permite justamente não gozar. Você pode gozar, mas não sob a forma de uma regra, de uma interiorização 'superegoica'. Por isso, o pensamento freudiano é mais atual do que nunca."

domingo, 2 de maio de 2010

Lorca - Chico - São João da Cruz - Lacan.....

Da Rosa
F.G.Lorca

A rosa
não procurava a aurora:
quase eterna em seu ramo,
procurava outra coisa.

A rosa
não buscava nem ciência nem sombra:
confins de carne e sonho,
buscava outra coisa.

A rosa
não procurava a rosa.
Imóvel lá no céu
procurava outra coisa.


Essa outra coisa! Coisa que não tem nome, nem nunca terá! Causa de um desejo, uma ânsia indefinida, um excesso e uma falta de algo ou alguém.Tema recorrente na obra de Lorca, presente já no Romancero Gitano no Romance da Pena Negra:

As picaretas dos galos
cavam buscando a aurora,
quando pelo monte obscuro baixa Soledad Montoya.
Cobre amarelo, sua carne,
trilha a cavalo e a sombra.
Bigornas esfumando seus peitos,
gemem canções redondas.
Soledad: por quem perguntas
sem companhia e a estas horas?

Pergunte por quem pergunte,
diga-me: a ti que importa?
Venho buscar o que busco,
minha alegria e minha pessoa.

Soledad de meus pesares,
cavalo que se desboca,
por fim encontra o mar
e travam as ondas.

Não me recordes o mar,
que a pena negra,
brota nas terras de azeitona
sob o rumor das folhas.
Soledad, que pena tens!
Que pena tão lastimável!
Choras sumo de limão
agre de espera e de boca.
Que pena tão grande!
Corro minha casa como uma louca,
minhas duas tranças
pelo solo da cozinha à alcova.
Que pena! Estou me pondo de azeviche, carne e roupa.
Ai minhas camisas de fio!
Ai meus músculos de papoula!
Soledad: lava teu corpo
com águas das calhandras,
e deixa teu coração em paz, Soledad Montoya.


Me lembro também de Chico Buarque e seu "O que será- à Flor da Pele", e dos poemas de São João da Cruz , Soledad Montoya poderia ser a Amante que desce o monte, desce as escadas, e caminha em direção ao mar, em meio à noite escura e que busca o descanso, que busca o Amado)!

1. Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh, ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.

2. Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.

3. Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

4. Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.

5. Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada!
Oh! noite que juntaste Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!

6. Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se ali adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

7. Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.

8. Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou.
Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.
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Chico Buarque - 1976

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores que vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

quinta-feira, 22 de abril de 2010

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Meu primeiro Lorca - Bodas de Sangue

Morte Mendiga


Beijo da Morte


A Lua

Gazel da Fuga


Perdi-me muitas vezes pelo mar,
o ouvido cheio de flores recém cortadas,
a língua cheia de amor e de agonia.
Muitas vezes perdi-me pelo mar,
como me perco no coração de alguns meninos.
Não há noite em que, ao dar um beijo,
não sinta o sorriso das pessoas sem rosto,
nem há ninguém que, ao tocar um recém-nascido,
se esqueça das imóveis caveiras de cavalo.
Porque as rosas buscam na frente
uma dura paisagem de osso
e as mãos do homem não têm mais sentido
senão imitar as raízes sob a terra.
Como me perco no coração de alguns meninos,
perdi-me muitas vezes pelo mar.
Ignorante da água vou buscando uma morte de luz que me consuma.

Poesia

Da Rosa
F.G.Lorca

A rosa
não procurava a aurora:
quase eterna em seu ramo,
procurava outra coisa.

A rosa
não buscava nem ciência nem sombra:
confins de carne e sonho,
buscava outra coisa.

A rosa
não procurava a rosa.
Imóvel lá no céu
procurava outra coisa.












"Para que serve um poema? Talvez para insistir que há sempre restos, equívocos, lapsos, fraturas na sintonia do homem com o real."


"Discurso da desordem consequente, a poesia não precisa lamuriar-se diante da ordem tecnológica e nela acusar o inimigo obstrutor de seu alcance. Excluída há mais de um século do grande circuito de consumo, ela pode, à margem, vigorar sem outro compromisso que não seja a afirmação de que nossa liberdade passa não apenas pelas palavras em que nos reconhecemos, mas, sobretudo, pelas palavras com as quais aprendemos a nos transformar."

BRECHT

Não desperdicem um só pensamento
Com o que não pode mudar!
Não levantem um dedo
Para o que não pode ser melhorado!
Com o que não pode ser salvo
Não vertam uma lágrima! Mas
O que existe distribuam aos famintos
Façam realizar-se o possível e esmaguem
Esmaguem o patife egoísta que lhes atrapalha os
movimentos
Quando retiram do poço seu irmão, com as cordas
que existem em abundância.
Não desperdicem um só pensamento com o que
não muda!
Mas retirem toda a humanidade sofredora do poço
Com as cordas que existem em abundância!

segunda-feira, 1 de março de 2010

Eu
F.G.Lorca

Encheu-se de luzes
meu coração de seda,
de sinos perdidos,
de lírios e de abelhas,
e eu irei muito longe,
além dessas serras,
além dos mares,
perto das estrelas,
para pedir a Deus
Senhor que me devolva
minha alma antiga de menino,
madura de lendas,
com o gorro de plumas
e o sabre de madeira.