terça-feira, 15 de junho de 2010

Adélia ou "essa estranha idéia de família viajando através da carne"

Encontrei em minha estante o primeiro livro de minha vida: "Poesias Infantis"de Olavo Billac. Ganhei - o de presente ainda muito criança. Ele fora de meu pai, e minha avó , Adélia de Freitas Mercadante, que já contava então oitenta anos de idade, lia- o para mim todos os dias. Sempre tive uma memória invejável para poemas e canções, tanto que alguns deles eu ainda sei de cor.
Chorei muito ouvindo - a declamar a história do cachorro plutão, que morria por fidelidade a seu dono, me emocionei ouvindo "o Pássaro Cativo" que recusava- se a cantar longe das matas onde nasceu. Havia também a fábula da boneca esquartejada por duas meninas furiosas que disputavam sua posse, numa adaptação poética da história bíblica de Salomão e as duas prostitutas que disputavam a guarda de uma criança. Os poemas, tristíssimos em sua maioria, buscavam uma espécie de formação ético- estética das crianças.

A boneca
Deixando a bola e a peteca,
Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: "É minha!"
— "É minha!" a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.

Tanto puxaram por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando à bola e à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca . . .



Meu amor à poesia vem de minha avó Adélia, assim como essa leve melancolia que me acompanha, mesmo nas horas mais alegres de meu dia, mesmo nos momentos mais felizes de minha vida.
Creio que esse jeito de ser decorre também do fato de eu ter nascido em Minas Gerais, lugar de alegrias comedidas e de temperamentos quaresmais.
Minha avó Adélia era um temperamento mineiro. Libriana, nascida em Outubro de 1901, era uma típica senhora de formação católica rígida, preocupada com os vizinhos e com a boa reputação de todos. Ela me pegava no colo e recitava para mim poemas e mais poemas. Além dos Bilacs, havia também Augusto dos Anjos. Sim, Augusto dos Anjos! Com sete, oito anos de idade eu já recitava de cor, graças a Adélia, o tão conhecido "a mão que afaga é a mesma que apedreja.".
Estou com o exemplar de "Poesias Infantis" ao lado do meu Lap Top. Minha avó é uma lembrança estranha, ainda próxima e ao mesmo tempo, distante. Passados muitos anos desde sua morte, tenho já que me esforçar um pouco para lembrar seu rosto, mas a sensação de sua presença se torna nítida, quando reconheço em minha trajetória os ecos de Augusto dos Anjos e os sopros de Bilac.




Plutão


Negro, com os olhos em brasa,
Bom, fiel e brincalhão,
Era a alegria da casa
O corajoso Plutão.

Fortíssimo, ágil no salto,
Era o terror dos caminhos,
E duas vezes mais alto
Do que o seu dono Carlinhos.

Jamais à casa chegara
Nem a sombra de um ladrão;
Pois fazia medo a cara
Do destemido Plutão.

Dormia durante o dia,
Mas, quando a noite chegava,
Junto à porta se estendia,
Montando guarda ficava.

Porém Carlinhos, rolando
Com ele às tontas no chão,
Nunca saía chorando
Mordido pelo Plutão . . .

Plutão velava-lhe o sono,
Seguia-o quando acordado:
O seu pequenino dono
Era todo o seu cuidado.

Um dia caíu doente
Carlinhos . . . Junto ao colchão
Vivia constantemente
Triste e abatido, o Plutão.

Vieram muitos doutores,
Em vão. Toda a casa aflita,
Era uma casa de dores,
Era uma casa maldita.

Morreu Carlinhos . . . A um canto,
Gania e ladrava o cão;
E tinha os olhos em pranto,
Como um homem, o Plutão.

Depois, seguiu o menino,
Seguiu-o calado e sério;
Quis ter o mesmo destino:
Não saíu do cemitério.

Foram um dia à procura
Dele. E, esticado no chão,
Junto de uma sepultura,
Acharam morto o Plutão.

2 comentários:

  1. Nossa avós são lindas. Será que elas sabem o quanto nos oferecem cores pra quadros que pintaremos um dia, lá adiante?

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